90 Anos de Assassinato no Expresso Oriente
O romance de maior fôlego de Agatha Christie completa noventa anos e nos mostra que os aspectos sociais e históricos por trás de sua obra permanecem atuais.
Nota do editor: dedico este texto à querida Angélica, professora e editora do Bafulê Literário — perfil literário que nos apresenta um livro por semana de maneira rápida e indolor, porque a vida tem que ser descomplicada! —, e ao querido Guilherme, jornalista e roteirista do documentário Representatividade nos quadrinhos ocidentais — documentário que traça um perfil histórico mostrando como essa arte se relaciona com grupos socialmente vulneráveis —, por compartilharem comigo sua admiração pela rainha do crime, Agatha Christie, e pela paciência com o projeto colaborativo de um podcast que não vingou, mas que se materializou neste artigo.
Pouco se pode acrescentar sobre a habilidade de escrita de Agatha Christie, uma das mais celebradas autoras da ficção de detetive do século 20, cuja fama perdura até hoje.
Seu nome tornou-se sinônimo de boas histórias, e sua habilidade em criar intrincadas tramas, cheias de mistério, continua a conquistar fãs no mundo inteiro. Mas são os aspectos históricos e sociológicos presentes em suas obras o que mais me atraem, especialmente em Assassinato no Expresso Oriente.
Publicado em 1934, o livro foi bem recebido pelo público e crítica da época, e seu protagonista, Hercule Poirot, ganhou popularidade entre seus ávidos leitores, fazendo com que o romance se tornasse um dos mais populares da autora.
Outro aspecto que talvez tenha ajudado a popularizar sua obra seja, justamente, os acontecimentos contemporâneos ao seu lançamento e os fatos históricos utilizados pela autora para ambientar seu romance.
Este livro é tão fascinante para mim, pois sinto que ele capta o espírito de algumas das grandes mudanças sociais que ocorriam no mundo naquele momento histórico, desde as mudanças na sociedade inglesa com a decadência da aristocracia com a eclosão da Primeira Guerra Mundial, em 1914, ao crime que chocou a sociedade norte-americana e o restante do mundo no início de 1930.
Antes de continuarmos, preciso dizer que a partir desse ponto teremos alguns spoilers da história. Por isso, se você ainda não leu Assassinato no Expresso Oriente, sugiro ler o livro antes de continuar lendo este artigo.
Eram cinco horas de uma manhã de inverno na Síria. Ao longo da plataforma da estação em Alepo, via-se o trem que figurava imponente nos guias ferroviários com o nome de Expresso Tauro.
— Trecho de Assassinato no Expresso Oriente
Assassinato no Expresso Oriente é mais do que uma história de mistério, para mim essa é uma história sobre vingança. No livro, Poirot precisa descobrir quem matou o Sr. Ratchett, um bem-sucedido empresário estadunidense que fez fortuna comercializando valiosas antiguidades do Oriente.
Ao desvendar o mistério, Poirot mostra seu lado sentimental, humano, ao perdoar moralmente os assassinos do Sr. Ratchett por terem tido uma causa justa para cometer o crime que cometeram, vingar o assassinato da pequena Daisy.
A história do assassinato da pequena Daisy é uma alusão ao sequestro e assassinato do bebê Lindbergh Jr., em 1932, que chocou o mundo e ficou conhecido como o “crime do século”. O caso ganhou alcance mundial, sendo noticiado por grandes veículos de imprensa como o Daily Mirror, tabloide britânico que cobriu o caso.
No início do livro não sabemos nada sobre o Caso Armstrong, tampouco que o caso faria alusão ao Caso Lindbergh. A única pista que temos é a de que um dos ilustres passageiros do Expresso Oriente, o Sr. Ratchett, recebe ameaças à sua vida e tenta contratar Poirot para descobrir quem seria seu algoz.
É apenas com a investigação do assassinato do Sr. Ratchett que descobrimos sobre o fato no qual o livro se baseia, e a natureza da história. O “crime do século” pode, a partir de então, ser julgado pelos leitores.
Esse artifício usado por Christie é impressionante, pois leva para o debate público uma questão de segurança pública que acontecera do outro lado do mundo, a centenas de quilômetros da Inglaterra, mas que acometeu o mesmo estrato social que o da autora, a elite.
Em seu artigo Literatura Criminal — uma narrativa da violência urbana, o professor Júlio Jeha (UFMG), ao explicar como a literatura criminal nos Estados Unidos atingiu seu ápice ao explorar a violência nos grandes centros urbanos, escreve algo que é importante para nossa análise.
O caso Lindbergh cristaliza, para o público, a impressão de que a sociedade está naufragando, uma visão apocalíptica transmitida pelas diversas mídias, que exploravam a imagem de um universo se desintegrando sob o impacto esmagador de um tsunami de crimes e corrupção.
— Júlio Jeha
A utilização deste caso na história tem muitas camadas que precisariam de mais do que um curto artigo como este para serem analisadas, mas me deterei na principal delas para mim, que é o próprio fato de Agatha Christie ter sido mãe.
Em sua autobiografia Christie não explora tanto o trauma vivido pelo divórcio de seu primeiro marido, tampouco os impactos para sua filha. Mas o pouco que escreve à respeito, fica claro que tal rompimento gerou uma desestabilização em seu núcleo familiar, especialmente na relação entre ela e sua filha, que parece ter se afastado emocionalmente da mãe.
O escritor e jornalista P. W. Wilson, em sua análise do caso Lindbergh, indaga que se uma criança de uma abastada família não está segura, nenhuma outra criança poderia estar.
Toda mãe sabia por instinto o que isso significava e estremeceu. Se um bebê Lindbergh não está seguro na sociedade, que segurança existe para qualquer bebê em qualquer lugar?
— P. W. Wilson
Fico imaginando se teria ocorrido à autora o que ela faria se nunca mais tivesse a oportunidade de consertar a relação com a filha caso ela fosse tirada de sua vida, assim como o Bebê Lindbergh. Se esse pensamento lhe passou pela cabeça ou se tiver sido o fator motivador para seu livro, infelizmente, nunca saberemos.
Outro interessante artifício utilizado pela autora foi tornar algo de apelo popular, neste caso a curiosidade pelos fatos acerca de uma tragédia que havia chocado o mundo, para popularizar suas histórias.
Ao utilizar um caso real de sequestro, seguido de assassinato de repercussão mundial, Christie relembra a tradição da literatura policial francesa do início do século 19, em que seus autores utilizavam fatos diversos (faits divers) veiculados pela grande mídia para criar suas ficções de apelo popular, garantindo boas vendas.
Com a trama central definida, seria necessário criar a atmosfera propícia para o desenrolar da história. E se o assassino da pequena Daisy estivesse preso com as vítimas, os juízes e os capatazes, sem a possibilidade de escapar? Qual lugar seria melhor do que dentro de um trem detido no meio do nada por uma nevasca, longe das vistas de todos e, principalmente, longe do alcance da polícia?
Christie mais uma vez recorre ao fato histórico que permeou a imaginação das pessoas no final da década de 1920 com a parada forçada do Expresso Oriente em Istambul, que estampou a primeira página do jornal francês L’Illustration, em 1929.
A ambientação da história é perfeita: um trem em meio a uma parada forçada é isolado no meio do nada por um banco de neve. Um passageiro é descoberto morto em seu leito, apunhalado, e não há policiais a bordo.
É preciso dizer que a ambientação da história não é acidental. A história foi ambientada no Expresso Oriente, trem que pertencia à Compagnie Internationale des Wagons-Lits fundada por Georges Nagelmackers, um engenheiro civil e empresário belga.
O Expresso Oriente e Expresso Tauro conectavam três continentes atravessando 14 países, cobrindo uma distância de 11.630 quilômetros. Passando por lugares quase inóspitos, o trem não só era objeto do imaginário das pessoas, como o alvo de muitos ladrões que espreitavam seu percurso, sendo este último umas das primeiras suspeitas da causa da morte do Sr. Ratchett — que teria sido possivelmente assassinado por um ladrão —, tese que foi logo descartada pelas células cinzentas do icônico detetive.
Talvez a ideia para a suspeita de roubo tenha surgido dos artigos publicados no Le Petit Parisien e Le Petit Journal, dois dos quatro maiores jornais franceses do final do século 19 e começo do século 20, que publicaram artigos sobre os ataques ocorridos nos Bálcãs.
No final do século XIX, os Bálcãs eram uma região difícil e insegura. As gangues criminosas geralmente trabalhavam de mãos dadas com os governantes locais. Em maio de 1891, um ataque a um trem internacional perto de Constantinopla causou grande tumulto. Os passageiros foram sequestrados e liberados somente após o pagamento de um resgate. Após o incidente, o governo otomano protegeu os trens internacionais com guardas armados.
— Trecho do livro Orient Express History sobre os artigos publicados no Le Petit Parisien e Le Petit Journal
Por sorte Agatha Christie não conheceu o Expresso Oriente e todo seu esplendor neste contexto violento, mas na era de ouro das viagens de longa distâncias de trem, momento em que as viagens ao Oriente por turistas ingleses e franceses eram muito comuns, especialmente depois que a operadora do Expresso Oriente adicionou uma última parada no Egito.
No entanto, Christie não conheceu o Expresso Oriente em um momento bom de sua vida, mas numa fase de recomeço. Após o traumático divórcio de seu primeiro casamento, Christie decidiu viajar às Antilhas e à Jamaica, mas depois de conversar com um casal de amigos, mudou de ideia e decidiu viajar, então, para Bagdá. Essa seria a primeira de muitas outras viagens que faria ao Oriente, e que serviriam de inspiração para muitos outros romances.
Toda a minha vida desejei viajar no Expresso Oriente. Muitas vezes, quando fora à França, à Espanha ou à Itália, vira o Expresso Oriente parado em Calais e sentira enorme vontade de embarcar nele. Expresso Oriente Simplon - Milão, Belgrado, Istambul…
Trecho do livro Agatha Christie — Uma autobiografia
As descrições que Christie faz em sua autobiografia sobre sua primeira viagem ao Oriente no Expresso Oriente são impressionantes e muito bonitas, mas se fosse transcrevê-las aqui, este texto ficaria muito longo.
Para aqueles que desejarem conhecer mais sobre a fascinante história deste lendário serviço de trem, recomendo a leitura da autobiografia de Agatha Christie, do e-book Orient Express History, do material produzido pelo autor holandês Arjan Den Boer e do diário de viagem com os registros feito pelo fotógrafo estadunidense Jack Birns em 1950 para a Life Magazine.
Por fim, gostaria de explorar o capítulo “O Hotel Tokatlian”, segundo capítulo do livro. Este capítulo é tão curto, mas ao mesmo tempo tão importante para entendermos a atmosfera do livro, que se não prestarmos atenção podemos acabar passando batidos por ele, e dando menos atenção do que este capítulo merece.
O capítulo marca a chegada de Poirot no Hotel Tokatlian, em tese sua última parada antes das tão esperadas férias, até ler um dos telegramas solicitando seu retorno à Londres para o desfecho do Caso Kassner. Poirot sequer passa uma noite no hotel, mas o hotel é importante tanto para a região quanto para o momento histórico.
O hotel Tokatlian foi fundado por Meguerditch Tokatlian, um cidadão otomano de ascendência armena, que se mudou de Tokat para Istambul em 1883. A rede de hotéis Tokatlian era concorrente da Compagnie Internationale des Grands Hotels, uma empresa subsidiária da Compagnie Internationale des Wagons-Lits (CIWL), e foi criada para oferecer aos clientes da CIWL acomodações de alta qualidade antes ou depois da viagem de trem.
Ao analisar o impacto social e cultural dos hotéis da Compagnie Internationale des Grands Hotels, podemos constatar os elementos do orientalismo advindos do imperialismo do empreendimento de Georges Nagelmackers.
No final do século 19, o interesse da burguesia européia por Istambul estava em ascensão, e para hospedá-los depois de uma longa viagem a Compagnie Internationale des Grands Hotels construiu hotéis que se tornaram verdadeiros símbolos arquitetônicos modernos da cidade para que seus hóspedes pudessem desfrutar da experiência cultural exótica de Istambul.
O palácio do poderoso sultão, as mulheres do harém, as mansões à beira-mar do Bósforo, a Praça Sultanahmet, os mendigos, os dervixes rodopiantes, os cães vadios, os bombeiros, os cemitérios e outros valores sociais que representavam um projeto cultural complexo, compreendiam ao mesmo tempo um convite aberto ao Oriente e um ponto de referência para o Ocidente.
— Journey to the Center of the East: 1850-1950
Fica claro, portanto, que o interesse de Georges Nagelmackers em “modernizar” o oriente na verdade era um projeto Orientalista. Neste sentido, como diz Edward W. Said, um projeto orientalista serve para “dominar, reestruturar e ter autoridade sobre o Oriente”, como fizeram muitos europeus desde o século 18, e que continuam fazendo atualmente.
A imagem do Oriente não foi produto nem da realidade nem da imaginação; foi uma ferramenta de expressão da construção intelectual, onde os dois estavam integrados e poderiam funcionar como razão de ser um do outro. Moldadas pelas observações e sonhos dos viajantes europeus, estas imagens também determinaram a perspectiva dos grupos de turistas que visitavam Istambul.
— Journey to the Center of the East: 1850-1950
Ainda que a gestão hoteleira fosse uma profissão nova para Istambul em meados do século 19, mesmo tendo incontáveis impactos culturais e sociais negativos na região, a população pró-modernização de Istambul viam a rede de hotel da Compagnie Internationale des Grands Hotels como janelas para o Ocidente.
Hotéis como o Pera Palace, Tokatlian e Bristol não só ofereciam acomodações luxuosas aos turistas europeus, mas também funcionavam como escolas nas quais os habitantes da cidade podiam aprender os costumes da cultura européia moderna.
As aulas de piano e dança oferecidos nos anúncios de hotéis publicados nos jornais da época, por exemplo, prepararam as base para o decoro ocidental, mudando permanentemente as características da cidade e de sua população, agora colonizada.
Esses são apenas alguns elementos históricos e sociológicos que fazem Assassinato no Expresso Oriente ser um livro de fôlego extremamente prazeroso de se ler e que demonstra que este romance está tão atual quanto na época em que foi publicado.